Sentimentos “domésticos” e emoções “selvagens”

Mário CeitilPresidente da Mesa da Assembleia Geral da APG (Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas)

Um outro olhar sobre a Inteligência Emocional

Muitos dos processos habitualmente utilizados nas intervenções sobre Inteligência Emocional não têm tomado em devida conta a subtil, mas fundamental, diferença entre “emoções” e “sentimentos”, muitas vezes assumindo que estes dois conceitos exprimem realidades que, no essencial, são praticamente as mesmas.

Diga-se, aliás, de passagem, que esta mesma alegada ausência de dissemelhança é refletida em muita literatura sobre estes temas, onde os dois vocábulos são frequentemente referidos praticamente como sinónimos.

No entanto, um estudo mais aprofundado da literatura de base científica, a partir de contributos de autores mais recentes, designadamente os do neurocientista português António Damásio, tem vindo a revelar especificidades importantes dos dois conceitos, que permitem hoje não só considerá-los como constructos científicos próprios e diferentes mas dão igualmente contributos valiosos para um maior apuramento das metodologias utilizadas para o desenvolvimento das “competências emocionais”, tanto em programas sincrónicos de formação como de intervenções mais diacrónicas no terreno.

o sentimento é a mente na emoção

Comecemos por essa definição elementar que Damásio propõe de que “o sentimento é a mente na emoção”, expressando aquilo que o autor considera como a “distinção crítica (…) entre os processos emotivos, que são programas de ação relacionados com os afetos e os sentimentos, que são as experiências mentais dos estados do organismo, incluindo os estados resultantes das emoções” (Damásio, 2017).

Tentando explicar: as emoções são reações químicas, metabólicas e fisiológicas que se expressam no corpo através de um reportório diversificado de manifestações comportamentais e que têm a particularidade de serem instantâneas e dificilmente controláveis e até disfarçáveis pelas pessoas que as experimentam. Um exemplo típico de manifestação emocional que representa bem esta definição é o facto de corarmos sem querer perante um estímulo emocionalmente significativo. Aqui, como noutras situações bastante mais complexas em que experimentamos aquele tipo de explosões conhecidas como “emotional highjacking” (“piratas emocionais”) as emoções acontecem, pura e simplesmente e a única coisa que podemos fazer é “gerir os estragos”.

O sentimento é uma coisa diferente. As emoções são químicas, metabólicas e comportamentais e são os “gatilhos” para reagirmos a uma situação ou problema; os sentimentos, como refere Damásio “são os motivos para reagirmos a um problema e monitorizam o êxito da resposta ou a falta dele” (op.cit.).

Mais uma vez, as emoções são, por assim dizer, “selvagens”, são coisas que “nos acontecem”; os sentimentos resultam do significado atribuído pela nossa mente aos acontecimentos emocionais e são, por isso, uma espécie de “reações domesticadas”, socializadas pela nossa biografia. Como tal, são coisas que “nós fazemos acontecer”.

Neste sentido, as emoções são reações que partilhamos com outras espécies animais, enquanto os sentimentos são atributo exclusivo das espécies dotadas de uma mente, ou seja, são exclusivos dos seres humanos, que são a única espécie de seres vivos “dotada de subjetividade” (op.cit.)

Situadas assim algumas das principais diferenças entre emoções e sentimentos, em que medida esta distinção pode ser operatória para a definição de metodologias de intervenção orientadas para o desenvolvimento de competências “da esfera” das competências emocionais?

Partindo da noção de que a emoção é, como referiu António Damásio, na conferência realizada no dia 27 de Agosto, no âmbito do CONARH (Conferência Nacional de RH da ABRH) “um comportamento exterior em que a máscara das nossas caras se manifesta e assume uma posição: alegria, ansiedade, medo, zanga”, sendo, por conseguinte, “ comportamentos observáveis”, é obviamente legítimo estruturar intervenções que visem desenvolver, na população alvo, competências dominantemente comportamentais, como aprender a identificar emoções através das expressões fisionómicas e das posturas corporais e a treinar algumas “técnicas” para lidar com as emoções mais disruptivas, tanto no próprio como na relação com os outros.

No entanto, o risco neste tipo de abordagens é o de orientar as ações na perspetiva de treinar meras técnicas de uma “cosmética comportamental” relativamente superficial e não de incentivar os participantes a um processo mais profundo de “resignificação” dos estados mentais que estão na base dos impactos que os gatilhos emocionais vão eventualmente provocar nas sus vidas.

Se, por outro lado, considerarmos como Damásio, que o sentimento é fundamentalmente uma “experiência mental, que é interior” e que não é imediatamente revelada através do rosto ou de qualquer outra manifestação de natureza observável, então a abordagem não poderá apenas centrar-se nos aspetos de treino comportamental de identificação e expressão das emoções, e terá de passar por um processo um pouco mais profundo de autorrevelação dos significados cognitivos pertinentes para a pessoa e que determinam as suas modalidades especificas de vivências dos estados emocionais.

Ao fazer estas considerações não se pretende tomar partido sobre qual o tipo de abordagens que pode eventualmente ser mais eficaz, em termos gerais e abstratos. Pretende-se apenas salientar que a profundidade de um conceito e a extensão e abrangência dos seus possíveis significados pode ser de enorme relevância para a definição de metodologias de intervenção mais e melhor adequadas aos objetivos contratualizados com os clientes.

Para que as intervenções, sobretudo em domínios tão complexos e “arriscados” como este, não se transformem em meros rituais de “dejá vu”, empacotados com as luminárias de uma modernidade frouxa ou de uma pressuposta inovação totalmente inconsequente.

Porque o rigor, concetual e científico, nos temas e metodologias das intervenções, é uma das principais e mais sólidas garantias de um verdadeiro serviço de excelência.

REFERÊNCIAS

DAMÁSIO, A. (2017). A Estranha Ordem das Coisas: A Vida, Os Sentimentos e as Culturas Humanas. Lisboa: Temas e Debates. Círculo de Leitores.

Escrito por

Mário Ceitil

•Licenciado em Psicologia pelo ISPA;•Professor Universitário;•CERTIFIED EXECUTIVE COACH pelo FranklinCovey/Columbia University Executive Coach Certification Program (Salt Lake City – EUA);•PROGRAMA DE FORMACIÓN DE COACHES PROFESIONALES – Nivel Básico (ACSTH – Approved Coach Specific Training Hours), pela Escuela de Coaching Ejecutivo da Tea-Cegos (Madrid, Espanha);•PROGRAMA DE FORMACIÓN DE COACHES PROFESIONALES – Nivel Avanzado (ACSTH – Approved Coach Specific Training Hours), pela Escuela de Coaching Ejecutivo da Tea-Cegos (Madrid, Espanha);•Managing Partner da Cegoc, de 1993 a 2015;•Consultor e Formador da Cegoc, desde 1981.•Coordenador da Escola de Coaching Executivo (2015/2016),
Saiba mais